Aviso aos navegantes leitores esse é um relato longo, que mistura tudo o que vivi sobre a prancha e as elucubrações duma prova que durou onze longas horas.
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Enquanto me preparava, ainda no quarto, sentia uma adrenalina que há muito não sentia.
Uma adrenalina assim? Puramente de ansiedade sem estar fazendo nada?
“Essa deveria ser a adrenalina que os Gladiadores sentiam.” Com esse pensamento me satisfiz e ao invés de querer conter o corpo com a respiração, aproveitei o momento.
Às 7.30 pontualmente o ônibus saiu carregado com as pranchas e caiaques para o local de largada.
Saint Chely du Tarn, uma pequena praia escondida nas monumentais sinuosas gargantas de pedra do Tarn.Tivemos que descer carregando as pranchas até a praia percorrendo aquele cenário monstruoso. Quando pisei na areia tocava em alto e bom som a música épica do Gladiador.Parece mesmo mentira, mas foi nesse cenário de ficção científica pessoal, que o dia começou. Ali enterrada na natureza olhei para cima e chorei; eu estava exatamente onde queria estar.
Com ajuda encaixei a minha prancha entre outras tentando achar um pequeno espaço de praia que quase não existia.Ao meu lado duas simpatissíssimas espanholas; Silvia e Magdalena.
Silvia dizia: “Esses atletas que vem focados em competir não são muito simpáticos.”
Eu retruquei: “A verdade é que não podemos comparar espanhóis e brasileiros com os franceses. Somos mais alegres.”Ali selamos amizade.
Magdalena já havia feito a prova e eu tentei pedir dicas. Foram oito horas para ela. Oito? Eu estava calculando umas doze para mim.
Perguntei o que fazer nas partes dos rápidos:
“Deita na prancha, se agarra bem e vai!”
“Mas e nos tobogãs?”
“Igual!”
Rimos e por um pouco espantamos os nervos.
Christian da RedPaddle veio me dar boa prova e aproveitou para checar a quilha. Na prova de ontem um atleta dele partiu o parafuso e uma quilha nas pedras. Esse ano o rio está mais raso.
A música épica transformou se em música de festa, e com remos ao alto os atletas gritavam e vibravam a largada. Partiu!Meus primeiros metros na prancha já me deixaram confortável na remada.
Poucos quilômetros depois da largada numa curva com rápidos a prancha que estava na minha frente virou e no choque eu fui pra água. Tratei logo de subir de volta.
O leash é proibido na competição por questões óbvias de segurança, o capacete é obrigatório. E antes que vocês se manifestem do meu capacete de snowboard; quatro pessoas elogiaram ele. Quatro!
Os rápidos muitas vezes eram bem rasos, daí que vinha o truque em andar mais para frente na prancha para aliviar o peso da quilha. Nos primeiros, como a maioria, eu ajoelhava para passar, com o passar dos quilômetros fui ficando bem confortável. Pular para frente da prancha e pular de volta para trás perdeu seu segredo.
Ler o rio faz toda a diferença, principalmente os rápidos. A escola da corrida de aventura e a bagagem de caiaque e rafting me deu esse knowhow na prática. Eu só percebi isso ali nas corredeiras porque abria diferença das pessoas à minha volta, depois perdia na remada.
Passaram duas tandens por mim, uma delas com duas meninas que divertiam se remando juntas. Óbvio que me remeteu a Dri e às nossas aventuras juntas na mesma prancha. Essa podia ser uma prova nossa. Quando passar isso a gente se vinga!
A primeira portagem era só passar uma mureta, nada difícil, pelo menos a altura que era, aos 9 quilômetros de prova.
No quilometro 18 chegou o que eu tanto tinha medo; a portagem de 1 km. Ali terminava a prova curta. Ali as “crianças” iam pra um lado e pro outro, os que deveriam carregar todo seu equipamento para contornar a parte intransponível e selvagem do rio.
Ali eu lembrei do Nuno e do seu carrinho; tinham várias pessoas com carrinhos para facilitar o trabalho. Enquanto isso eu sofria 15 metros. Parava. Trocava de mão. Sofria mais quinze metros e respondia: “Sim está tudo bem!” para os que por mim passavam.
“Cacete! Não não tá nada bem! Socorro!”
Um quilômetro e pouco depois, traumatizada voltei para água. Ali eu já sabia que nem que eu me afogasse partisse o casco ou seja lá o que fosse eu ia encarar o rio em todas as portagens que fossem opcionais. Inclusive nas água bravas da pista de caiaque.
Não demorou muito tive que escolher. A primeira passagem de tobogã enquanto algumas pessoas saem com as pranchas da água eu aviso o staff que vou sobre a prancha, ele me aponta o lado.
A técnica de virar a prancha ao contrário era inviável. Me ajoelhei joguei o peso do corpo para frente da prancha e rezei para quilha aguentar. Após a descida prancha imbicou tanto na água que eu fiquei toda molhada, mas não virei. Sai dali gargalhando e comemorando a vitória.
No quilômetro 37 mais ou menos a energia da Lurdes chegou em mim de uma forma engraçada. Uma cobra atravessou o rio na minha frente. Como num dejà vu; exatamente a visão que tive da outra vez, só que a prancha da Lurdes ia na minha frente. Então foi como isso, ela estava ali comigo. A cobra dessa vez cruzou o rio decididamente para a outra margem, mas o grito da Lurdes eu ouvi na mesma.
A Lu me remeteu a pensar na trajetória do SUP e em todas as temporadas de stand up paddle da Flower People, todas as pessoas que conseguimos contaminar e que principalmente que nos contaminaram, seja lá com o paddle ou na maneira de se aventurar na vida. Sinto que recebo mais do que dou, e nesse pensamento resolvi remar e dedicar a competição à todas as pessoas que nos cruzaram nessas águas da vida. Comemorar o tanto bom vivido. “Hoje remo por vocês, que remam conosco!” Eu comi bastante no segundo abastecimento e tratei de meter coisas salgadas para dentro. O Rui na véspera ficou me aconselhando de todas as maneiras para a boa alimentação e hidratação (muito amor envolvido desse meu treinador nutricionista que cuida de mim). Aliás nunca bebi tanto na vida. Comprei um colete salva vidas com camelback e fiz a mesma mistura que a Dri e eu fizemos no SUP11 cities; metade água metade Coca-Cola. Dava para beber sem parar de remar.
Da metade da prova em diante a coisa começou a apertar. Calor, cansaço e todas aquelas coisas deliciosas que uma corrida de endurance trazem. Ali a paisagem começa a ganhar cor as emoções começam vir mais intensas. Todos os nossos sentidos ficam a flor da pele.
Tive que sentar para comer na prancha mesmo e ter mais energia. Passa por mim um atleta.
“Tá tudo bem?”
“Tá! É a hora da Chocolatine!”
Já arriscava nas corredeiras ficar de pé porque a quantidade de vezes que me ajoelhei fez com que ficasse com os joelhos ralados.
Numa das praias beira rio avistei uma família parei e pedi protetor solar. O meu francês é tão ruim que me dá amigos imediatos. A mulher até me ajudou a passar o creme.
Quando o quilômetro 55 chegou, eu já estava com a faca nos dentes. Venha ela, pista de caiaque!
Em modo kamikaze entrei remando, sob olhares de 3 canoístas que aguardavam em seus caiaques para o salvamento. Remei como se a prova fosse acabar ali e sem que a prancha virasse saí com ânimos a mil.
Outra coisa aprendida: “Peixe que dorme, a maré leva.” Então não adianta agarrar na prancha e rezar, como a minha amiga espanhola disse, nas corredeiras é preciso remar, e remar rápido!
Passei mais uma! É uma competição de SUP todo terreno! In love com as habilidades e adrenalina que esse esporte pode ter!
Sob o Viaduc de Millau a grande ponte e obra arquitetônica o vento começou a soprar. Com o vento e a paisagem viam se voadores. Lembrei de você, paiê!
Mãe, não fica com ciúmes, depois vieram as divagações porque escolhi os pais que tenho, e se a adrenalina veio de lá, o entusiasmo contagiante, veio daí!“Agora o sofrimento tá completo.”Tá bom querem mandar vento, mandem lá isso!
Como eu passei direto pelo terceiro abastecimento, resolvi parar no último no quilômetro 66 ali encontrei uma outra amiga que tinha feito na largada:
“De onde é o seu sotaque?”
Foi o maior elogio que meu francês podia ter. Afinal o que eu falo pode ser considerado francês?
Ela estava fazendo a competição em revezamento e esperava sua equipe. Me perguntou também o que mais ouvi esses dias; “Você veio de Portugal só para essa competição?”
Depois também lhe contei da Gordinha e aventuras de bike.
Quando subi na prancha para continuar todos que estavam na praia ovacionaram minha saída.
No quilômetro final eu morta passa um por mim:
“Vamos! Vamos rema, tá na hora da Chocolatine!”
Tentei acompanhar o ritmo mas desisti, apreciei o final e minha exaustão.
Em horas era já noite, mas sol ainda brilhava deixando tudo dourado, o que me trouxe mais emoção. A linha de chegada estava aqui!
Depois de 11 horas e 15 minutos em cima da prancha fui a quinta mulher de stand up paddle a cruzar a meta. Com a alma cheia de mais um dia de aventura inesquecível.
Obrigada a todos que remaram junto e aos que remam junto. Aos que nos contaminam com sua vibração e se deixam contaminar com a nossa!
Obrigada RedPaddle pela prancha minha aliada de batalha. Nós não remamos contra as corredeiras, remamos com elas. Foi uma simbiose mágica entre nós e o rio Tarn. Privilégio absoluto sentir-se parte da natureza!
Obrigada ao Babosvky meu treinador russo que me põe na linha seja para treinar ou para comer e me hidratar.
Obrigada meu amor, que ao me dar asas faz brotar raízes. Amo te!
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(Ah! Lembram das minha amiga espanhola Silvia que reclamava daqueles que são sérios focados na competição? Ganhou a prova! Hahaha!)
5 Responses
Que relato mais , como posso dizer, lindo, magnífico, estupefante” existe essapalavra” . Ameiii…. ameiii.. ameiii.. ameiiii…
Receita assim ontem com você desse jeito, só nas corredoras que fiquei para trás mas te alcancei.
Ahh.. sinto muito, mas nessa terá que ir novamente…. hahahha.
Sério? Que prova! Você é isso! Essa prova essa energia. Te amo💗💗
O relato não é grande, diante de toda a minha curiosidade e perguntas que farei quando estiver contigo ♡
Caramba, tanto kilometro tanto esforço, tanta alegria, tanta cor!!!
Só tu mesmo para conseguir tal feito♡
Morro de orgulho de ti minha Rosa venenosa ♡ LUz no meu caminho♡
Chorei só isso…. Li e reli para curtir duas vezes sua emoções filhota! Orgulho! orgulho, admiração, admiração, risada e choro!!!
Obrigada Dr. Babovisky por tomar conta dessa aventureira mesmo a distância!
Love you e muitos bjs e carinho para todos que te seguem…amo vcs !
Eu sei que sou suspeito e que já te disse isto mas, eu adoro a capacidade que tens através da escrita, de nos fazer vivenciar todas as tuas aventuras como se estivéssemos lá!
És um exemplo de superação para muitos, de aprendizado para outros, de alegria e felicidade para um todo grupo de amigos que vais conquistando por ande passas…tu cultivas flores!
Para mim és a mulher mais incrível e inspiradora que alguma vez conheci e mesmo após estes “quase” 5 anos juntos, não há um único dia que não te admire!! ❤️
Muitos parabéns meu amor e que sigamos juntos nesta parceria da vida, comemorando e inspirando felicidade! Amo-te ❤️❤️❤️
PS. Sogrinha, pode deixar que eu cuido e cuidarei sempre bem da nossa cachopa! 🥰😘
“Obrigada meu amor, que ao me dar asas faz brotar raízes” ❤️ adoro!!!