Foi no primeiro dia que chegamos aqui que aprendemos sobre as 108 voltas; já fiquei intrigada com a missão. E lá prometemos que daríamos todas as voltas ao redor de algum templo na nossa viagem.
O templo quem escolheu foi o SP, nosso guia, porque seria num dia que teríamos essa disponibilidade de tempo aliada a importância do lugar; um dos templos mais antigos do Butão, em Bumthang.
Saímos do hotel de manhã e a primeira parada foi para comprar oferendas para doar no mosteiro que fôssemos abençoar nossas malas.
A mala é um rosário budista usado para orações, mantras e meditação. Assim como no Tibete e em outras tradições budistas, ela tem 108 contas, um número sagrado no budismo, representando os 108 tipos de aflições ou obstáculos espirituais que podem ser superados pela prática. Daí também vem a peregrinação em forma das 108 voltas.
As nossas, são mais que especiais, são de sementes de Bodhi vêm da árvore sob a qual Buda alcançou a iluminação, tornando-se um dos materiais mais sagrados para malas budistas. Dizem que tem energia espiritual forte e ajudam na concentração durante a meditação.
A primeira parada do dia foi no templo e mosteiro e coincidentemente (ou não) quando entramos no templo os monges estavam começando uma reza poderosa.
“Essa reza chama Barchay lumsel. Barchay: obstáculo, Lum: caminho, Sel: limpar. Nós trará purificação espiritual, remoção de obstáculos e bênçãos para o caminho. Vocês são mesmo afortunadas.”
Os langures nos afortunaram com a dança que nos afortunou com a reza, que ainda nos afortunará?! Aqui já deixamos de acreditar na sorte; seguimos na mesma vibração, o universo está alinhado.
Durante a cerimônia, os monges recitam mantras, acompanhados pelo som profundo dos tambores, címbalos e trombetas. O som é impressionante.
Sentamos de pernas cruzadas num dos cantos do templo para ouvir a cerimónia.
Fecho os olhos e agradeço, enquanto tento absorver toda aquela variação de sons, notas e mantras que harmonizam meu corpo. Sinto todas as células vibrarem junto. A sensação é tão forte e presente que escorrem muitas lágrimas dos meus olhos, mesmo fechados.
Depois seguimos a visita no templo, eu ainda meio atordoada. Demorei um pouco para voltar para terra.
SP pediu nossas malas e contou cada uma delas para ver se tinham as exatas 108 contas. Coisa que eu nunca faria por nem imaginar que pudessem eventualmente não ter.
“Tudo certo.”
Ai eu resolvi conferir, a primeira vez contei 109! Contei mais 5 vezes até ter a certeza que tinha um pecado a mais que todos os budistas. Se eles não fossem tão supersticiosos, eu provavelmente teria deixado a minha com 109.
Visitamos mais um templo.
Depois seguimos para o Jambay, o eleito onde teríamos nossas malas abençoadas.
Fizemos a doação e encostamos as malas em todas as estátuas e divindades do interior do templo.
Depois o monge fez orações para abençoa las, enquanto ouvíamos sentadas no chão com as malas à mão. A maneira de rezar é casada com a respiração e traz aquela vibração de novo; onde nossos átomos parecem vibrar de maneira que sentimos o som.
Malas abençoadas. O monge joga a água sagrada nas nossas mãos e nós jogamos nas nossas cabeças.
Hora de começar a peregrinação. Na noite anterior eu tinha tentado fazer alguns cálculos de quanto tempo demoraríamos para cumprir com a missão, mas haviam muitos fatores a considerar. Só cheguei a conclusão que seriam algumas horas, quantas? Haveríamos de descobrir.
Um pouco mais de dois minutos num ritmo controlado em conjunto, era o que levávamos para completar apenas uma volta.
O dia estava lindo e as paisagens do entorno do templo eram lindas. Fazia todo sentido estar ali.
Depois de quase meia hora peregrinando aparece SP e pergunta com quantas voltas estávamos. Quando ele percebe que demoraríamos a eternidade arruma uma solução e nos leva para o interior do templo para darmos voltas menores.
“Mãe, para mim não faz sentido nenhum ficar dando voltas aqui dentro nessa escuridão só para cumprir tabela. Decidi fazer isso para descobrir conexão, aqui não encontro o propósito.”
Voltamos para o exterior e continuamos. O piso é muito irregular, pedras desformes, e canais de água cortam nosso caminho.
“Se fosse fácil…”
A volta tem em torno de 170 metros. Eu vou na frente minha mãe segue atrás.
“OMMANEPAEMEYHUN” enquanto entona se o mantra vai se passando as contas da mala. De uma em uma. Eu achava que poderia usar a minha mala para contar as voltas, mas não, a mala conta a reza.
As voltas, os peregrinos contam com pedrinhas, que deixam em algum cantinho da volta. Eu resolvi não arriscar liguei o garmim e fui dando laps toda vez que passava na entrada do templo.
Trazemos sorrisos para os peregrinos locais ao mostrar interesse por sua religião e partilhar seu caminho.
Uma senhorinha nos corrige e mostra que devemos segurar a mala na mão esquerda. Para mim fez sentido porque o templo está à direita e com essa mão livre ainda consigo girar as rodas de oração
Com 38 voltas paramos para almoçar.
“Sim, você pode parar e ter intervalos, claro! O importante é que todas as voltas sejam dadas no mesmo dia.” Sentia se a preocupação na voz de SP.
Fomos almoçar no nosso hotel. Esse, também familiar, nos tocou nos detalhes. Flores nos rolos de papel higiénico, toalhas em formas de elefantes, guardanapos carinhosamente dobrados. Olha a sobremesa!
Depois do almoço, SP e Vishnu iriam voltar de carro para Paro, atravessar de uma vez o que fizemos aos poucos, nós duas iremos de avião amanhã.
Nos deixaram novamente o templo e partiram.
“Vamos lá; mais 70 voltas.”
É louco pensar, mas parece que atravessamos um portal, onde o tempo deixa de existir.
Já nos familiarizamos com todos os peregrinos que estão às voltas. Um senhorzinho entona a reza sempre que passamos por ele, abre um sorriso gigante de apenas um dente, ri e faz o sinal com as mãos feliz que estamos ali. Outra senhorinha fala “Kandrinchey” (obrigada em butanes) toda vez que passamos por ela.
No budismo prega se muito rezar pelo mundo, pelos outros. Foi o que eu procurei fazer, reforçava meu mantra muitas vezes ao girar as rodas de oração, pensando em tantas pessoas que poderia enviar boas vibrações. Quando esgotavam se as conhecidas, energizava o planeta. Tentava entonar também a reza naquela reverberação gutural para fazer vibrar minhas células.
Lá pela volta 70 minhas mãos já estavam completamente congeladas, paro para colocar meu casacão.
Aqui começa aquela indagação das competições de endurance.
“O que que estou fazendo aqui?”
Ai começo a comparar competição x peregrinação e com minha cabeça quase três horas girando no sentido horário, já começo a alucinar:
“O sofrimento sempre traz beleza, traz valorização do simples, traz gratidão. As competições de endurance são sim peregrinações espirituais. A minha religião é outra, é só minha, mas partilha muito dos valores budistas.”
Já faltando menos voltas, não lembro quantas, bem na entrada do templo minha mãe cai. Eu assusto ao olhar para trás e vê la no chão. Depois de recuperar, ao percebemos que foi um susto, decidimos continuar.
“Faltam tão poucas.”
O sofrimento da minha mãe é diferente do meu. Os pensamentos são diferentes, as vivências, condições, propósitos e vontades.
As irregularidades das pedras parecem aumentar com a nossa rodagem. As pernas já não respondem como respondiam. Já temos mais de 16 quilómetros.
“Faltam DEZ voltas.”
Olho para trás e dessa vez vejo o tombo (o segundo) e assusto ainda mais. Agora até a testa abriu num pequeno rasgo.
“Será que não deveria ter insistido para continuar depois do primeiro tombo?”
As últimas dez voltas dei sozinha quase correndo, com as duas malas, uma em cada mão, enquanto minha mãe esperava.
“Tá tudo bem, Lu.”
A toda volta ela garantia que eu podia seguir.
Para mim foi uma sensação ambiguamente esquisita; entre querer completar e honrar nossa missão com um misto de irresponsabilidade em deixar minha mãe ali.
Cento e oito voltas terminadas. Quatro horas de peregrinação. Quase dezoito quilómetros.
Pegamos um táxi e voltamos pro nosso hotel.
Claro que num contexto espiritual a tendência é tentar uma leitura e achar um porque; uma explicação que poderia trazer algum conforto.
A nossa foi transformar o trauma em risada. Teriam sido as 109 contas?
Minha mãe ficou bem.
Na hora não teve graça nenhuma, depois virou piada. Agora quando ela fala que não quer ir.
Eu falo; “Tá bom, mas não precisa fingir o ataque epiléptico!”
3 Responses
Mas vou te falar que o “esparramo” doeu doeu. Mas as risadas geradas pelo “ataque epiléptico”gerou dor na barriga de tantas risadas….thanks filhota
Quer dizer que ela tb fala pra vc, na maior naturalidade que vc é capaz, e que será sensacional???
Bjs
Desconheço totalmente a religião budista e é bem interessante perceber a forca como cada religião vive as suas crenças.
Eu, curiosa por natureza adoro esse respeito e participação humana sem demagogia, apenas uma fé que abrange toda e qualquer religião. O amor em mala, em terço ou Corão. É tão bonita essa paz em 108 voltas♡
Aposto que a mamãe ficou ótima e ainda mais aventureira ( mesmo com um galo na testa😁)
♡ Beijo para a Mamãe e para ti mana, com muito amor♡